sexta-feira, 20 de maio de 2011

A boneca quebrada

Descia a porta de aço, quando as três chegaram: a mãe, a garotinha e a boneca. A segunda chorava.
O homem dos cabelos completamente brancos suspirou e ainda tentou se esquivar.
- Desculpe, já estou fechando. Abro amanhã às nove.
A mãe encarou a filha com um misto de pesar e compreensão. A filha não se deu por vencida. Estendeu as mãozinhas, mostrando a boneca.
- Por favor… Ela foi mordida pelo meu cachorro. É a minha filhinha. Não posso deixá-la com esse corte na barriga.
O velho acocorou-se com um pouco de dificuldade e tomou a boneca nas mãos. O enchimento de espuma saía pelo corte que ia da barriga até o bracinho de borracha. O braço pendia, seguro apenas por algumas costuras resistentes.
- Ela pode repousar esta noite, com você. Traga-a amanhã e eu prometo que a conserto no mesmo dia, tudo bem?
A menina puxou a boneca de volta e se agarrou a ela. As lágrimas escorreram mais abundantes.
 - Não posso abandoná-la! Ali está escrito “Hospital de Bonecas”. Você devia se preocupar mais com suas pacientes.
A mãe sorriu, discreta. Orgulhava-se da personalidade da pequena.
O artesão baixou a cabeça e se levantou resignado.
- Está certo. Vamos entrar.
Abriu novamente as portas, acendeu as luzes na caixa de força, iluminando toda a loja. Nas prateleiras havia bonecas de todos os tipos, marcas, idades e tamanhos, assim como roupas e acessórios proporcionais a cada uma. Era um espetáculo impressionante, ver todos aqueles olhinhos estáticos brilharem à luz artificial, que permaneciam imóveis em suas expressões congeladas e coloridas.
Dirigiu-se para trás do balcão, repleto de peças para conserto: braços, pernas, olhos, fios de náilon para cabelos, tintas de várias cores diferentes, linhas, agulhas, alicates…
- Vocês duas podem aguardar sentadas nos bancos. Logo eu volto com notícias.
A garotinha permaneceu em pé.
- Importa-se se eu for junto? Ela está com medo, quer que eu segure em sua mão…
- Claro que não. Pode vir.
Os três entraram na oficina, a boneca carinhosamente acomodada nos braços do médico. Ele a estendeu sobre a mesa de trabalho e a imobilizou cuidadosamente na morsa, sob o olhar atento da dona da boneca.
Da prateleira repleta de diferentes tipos de enchimento, escolheu um vidro cheio de espuma e, sentando-se no banquinho sem encosto, começou a preencher o interior da boneca.
- Ela perdeu bastante enchimento. Estou fazendo uma transfusão, tá?
Ela confirmou com a cabeça, com uma expressão muito grave.
- Prontinho, agora é só suturar o corte e o braço e ela estará nova em folha.
O homem pode sentir o suspiro de alívio da garotinha e a viu relaxando os ombros. Ela realmente esteve muito tensa com a situação.
- Minha mãe estava certa. O senhor é o melhor médico de bonecas do mundo. Eu achei que não poderia salvá-la, mas estava errada.
Ele sorriu, grato. Já havia consertado muitas bonecas para a mãe da menina, quando aquela também fora criança.
Arrematou a costura com dois pontos perfeitos e cortou a linha rente ao tecido, com uma tesoura pequena. A menina estendeu-lhe um vestidinho lilás, com rendas.
- Ei, eu ainda não dei alta à paciente…
Os lábios estreitaram-se, num pequeno susto.
- Ela terá que ficar em observação?
Ele riu, pegou o vestido e vestiu a boneca, entregando-a à garota.
- Não. Só estava brincando com você.
Voltaram para o interior da loja, onde a mãe aguardava sentada. ao avistá-los, levantou-se e veio até o balcão, já sacando a carteira da bolsa.
- Fiquei ali, me lembrando de quantas horas de tensão passei sentada naquele mesmo lugar, esperando você reaparecer com minhas bonecas. Todas as vezes eu o imaginava saindo pela porta e me dizendo que daquela vez não teria conserto.
O artesão puxou um grande livro de sob o balcão, onde anotou à mão o nome das clientes, o modelo da boneca e o conserto realizado. Tinha o histórico de cada conserto, ali, para o caso da mesma paciente retornar.
Tomou o dinheiro das mãos da mãe, abriu a caixa registradora antiga e devolveu-lhe o troco.
A garotinha apoiou-se na ponta dos pés, segurando-se na beira do balcão para falar com ele.
- Alguma vez o senhor não conseguiu consertar uma boneca?
Ele parou o movimento de fechar a caixa registradora e seu olhar tornou-se vidrado por alguns segundos. Quando falou, o tom de voz saiu seco e cheio de amargura.
- Sim. Apenas uma vez.
A mãe compreendeu que aquilo despertou alguma lembrança dolorosa e despediu-se depressa, tirando a filha de lá.
O velho então tornou a desligar as luzes e fechar as portas. Subiu as escadas que ficavam exatamente ao lado da loja, entrando em sua casa. Sentia-se mais cansado que o normal.
Atravessou a pequena sala e parou em frente à porta entreaberta, no meio do corredor, para enxugar as lágrimas antes de entrar no quarto que havia sido convertido em uma pequena enfermaria.
Lá estava sua mulher cochilando na poltrona ao lado da cama onde estava sua filha, ligada a diversos aparelhos que mantinham os órgãos funcionando. O quarto estava sufocado pelos bipes monótonos que saíam dos monitores e do som da respiração áspera da mulher paralisada.
Ele se aproximou e tocou-lhe de leve os cabelos, vendo suas pálpebras se abrirem lentamente com o despertar. Ela sorriu para ele.
O velho lhe tocou a testa com os lábios e saiu o mais depressa possível, para que a única boneca que nunca pôde consertar não o visse chorar.

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